16 de fevereiro de 2010

Amizade Estelar

Muitas vezes tentei ir embora do lugar onde imaginei só nosso. De cada vez que arrumava a tal bagagem imaginária, esbarrava nas lembranças deste nós, que verdadeiramente jamais existiu.
Conhece a sensação de nada sermos quando estamos no escuro? Um mundo que silencia e se apaga, enquanto permanecemos ali imóveis, com uma mão ausente de tudo e outra repleta de nada.
A princípio não sabemos aonde ir e tudo o que pudermos pronunciar, seja uma prece ou o nome ausente, parece inútil, o som morre na garganta, escoando num abismo sem ouvido.
Dia houvesse em que nos esquecêssemos recostados ao amontoado das lembranças, poderíamos nos reencontrar nas páginas de um livro recheado de ausências, seria demasiado fácil reconhecer-nos.
Era como se a qualquer momento uma página virasse e uma janela se abrisse, dali poderia acenar enquanto refletia sobre o que lia.*
Os dedos de uma mão marcavam firme a folha, o olhar perscrutava a alma em busca desse algo distante e imponderável, um tudo que se assemelhava com a quase proximidade que desfrutamos um dia.
Neste amanhã, como ontem, como agora, pairamos num meio, num quase, e no infinito se estabelece a certeza de que será sempre assim, mas nada dói. Apenas nos tornamos mutuamente previsíveis e capazes de nos encantarmos na mesmice.
Já não existe a inquietude de antes, aprendi que em cada reencontro somos cada vez mais bem-vindos um ao outro. Uma amizade que por vezes se confunde com amor.
*
"Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos nos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois barcos que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho; podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol, parecendo haver chegado o seu destino e ter um só destino. Mas então a toda poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos e talvez nunca mais nos vejamos de novo ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é lei acima de nós: justamente por isso devemos nos tornar também mais veneráveis um para o outro! Justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade.- E assim vamos crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos que ser inimigos na Terra.” (Nietzsche – A Gaia Ciência – Livro IV)

© Clivânia Teixeira

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