21 de fevereiro de 2010

amor e solidão

Um dia nos consideramos a obra mais perfeita da natureza, para num repente percebermos que há em nós uma incompletude tal que põe em cheque esta perfeição.Diante do amor não somos demasiadamente novos ou velhos, somos intrinsecamente a essência do que sentimos. Por isso devemos cuidar, pois que amar é o ato paradoxal de precisar visceralmente e ao mesmo tempo prescindir do outro acima de tudo, e isto é também abrir mão de um pouco do que somos. O ato de amar é por si algo que nos impõe ao reconhecimento de não sermos o bastante para nós mesmos, e ainda que sendo assim é nosso desejo bastarmos a quem amamos. Amar gera o desconforto de abrir mão do sermos plenos em nossa solidão, é perder um pouco da paz interior. Por amor nos pomos livres a caminhar tranqüilamente à margem de um desconhecido. É o amor que nos liberta para nossa própria desapropriação.

Fonte: Centopéia 12 - Exercício poético Luna & Amigos

© Clivânia Teixeira

viver a vida

O olhar é mágico quando insere no âmago da apreensão a simbiose entre o racional e o emocional. Há que se ter uma certa poesia para escrever a prosa da vida, há que se ter um traço mais reto para escrever com simplicidade o cotidiano. O olhar poético confere ao ato de perceber uma visão mais assertiva diante da vida e proporciona mais prazer ao agir. Há que se ter olhos de mundo para observar o simples. Há que se ter o olhar simples de criança diante da seriedade que impera no mundo. Este caminhar firme de mãos dadas com abstração é o atrito perfeito que nos leva a ir mais além. A flexibilidade, a acuidade infantil diante do banal, o desfrutar da mesmice como se tivesse diante de si a oitava maravilha do mundo. É este olhar espantado de quem tudo vê pela primeira vez, é o agir sempre com o prazer de recomeço. Olhar a vida como uma obra de arte e de cada vez perceber que a arte está na transformação e no renascimento.

Fonte: Centopéia 13

© Clivânia Teixeira

olhar que advinha

E assim a alma inteira explode na intensidade do olhar de quem ama. Colhe-se aí a voz do pensamento, o resultado ímpar da cumplicidade com o outro. Olhar apaixonadamente significa expressar a combustão dos sentimentos que aquece o íntimo dos seres. Porque o olhar resume em si a forma mais simples de dizer ao outro, o que muitas vezes transformar em palavras , empobrece.

Fonte: Centopeia 4

© Clivaria Teixeira

16 de fevereiro de 2010

Amizade Estelar

Muitas vezes tentei ir embora do lugar onde imaginei só nosso. De cada vez que arrumava a tal bagagem imaginária, esbarrava nas lembranças deste nós, que verdadeiramente jamais existiu.
Conhece a sensação de nada sermos quando estamos no escuro? Um mundo que silencia e se apaga, enquanto permanecemos ali imóveis, com uma mão ausente de tudo e outra repleta de nada.
A princípio não sabemos aonde ir e tudo o que pudermos pronunciar, seja uma prece ou o nome ausente, parece inútil, o som morre na garganta, escoando num abismo sem ouvido.
Dia houvesse em que nos esquecêssemos recostados ao amontoado das lembranças, poderíamos nos reencontrar nas páginas de um livro recheado de ausências, seria demasiado fácil reconhecer-nos.
Era como se a qualquer momento uma página virasse e uma janela se abrisse, dali poderia acenar enquanto refletia sobre o que lia.*
Os dedos de uma mão marcavam firme a folha, o olhar perscrutava a alma em busca desse algo distante e imponderável, um tudo que se assemelhava com a quase proximidade que desfrutamos um dia.
Neste amanhã, como ontem, como agora, pairamos num meio, num quase, e no infinito se estabelece a certeza de que será sempre assim, mas nada dói. Apenas nos tornamos mutuamente previsíveis e capazes de nos encantarmos na mesmice.
Já não existe a inquietude de antes, aprendi que em cada reencontro somos cada vez mais bem-vindos um ao outro. Uma amizade que por vezes se confunde com amor.
*
"Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos nos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois barcos que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho; podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol, parecendo haver chegado o seu destino e ter um só destino. Mas então a toda poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos e talvez nunca mais nos vejamos de novo ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é lei acima de nós: justamente por isso devemos nos tornar também mais veneráveis um para o outro! Justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade.- E assim vamos crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos que ser inimigos na Terra.” (Nietzsche – A Gaia Ciência – Livro IV)

© Clivânia Teixeira

15 de fevereiro de 2010

do real para o imaginário concreto

Alguns escrevem sobre os momentos por um estado ébrio da mente, outros por uma tristeza que desencarna o corpo ao imponderável do ser, e entre tantos existem aqueles que são abduzidos da realidade simplesmente por que chove, estes são visceralmente na essência, a mais pura emoção.
Chove.
Poderia se dizer destes momentos, coisas absolutamente infantis, algo como “a chuva cai de pinguinhos”, mas vai-se ao subjetivo, a essência, simplesmente para acordar.
No ninho e subterfúgio da alma, desperta. Neste imaginar diáfano de coisas sensíveis é possível ouvir as gotas sorrateiras deslizando na vidraça, só de imaginar o vento lá fora sente o arrepio no murmúrio dos corpos quentes.
Neste corpo devassa a alma do corpo que é cativo, é o fim que se traduz em si mesmo, um simples recostar na encosta do peito eleito para amar entre as dobras de cobertas aconchegantes. O gesto é impessoal, mas definitivamente intransferível.
Poderia dizer um nome, mas prefere dizer que neste momento, escandalosamente feliz, é apenas uma mulher romântica apta a fazer poesia dos momentos em que a sensibilidade aflora e não pode dar cabo de si, poderia dizer que é uma inspiração latente, mas isso seria interpretado com um desejo inacabado. As conclusões banais acabam por ser o lugar comum dos medíocres.
Estes recantos abissais se revelados simplesmente se dissipariam, mais apropriado é o contorno do etéreo à possibilidade remota de qualquer frustração, aqui se pode decantar a fantasia, aqui esse tudo é naturalmente e essencialmente nosso, uma obra que se traduz em algo mais que prazer de corpos, é puro deleite da alma que perdura.
Sim, nem só de poesia vive o homem, a fome do pão no corpo não pode ser superior a capacidade de dominá-la, nas superações aprendemos a apreciar o intangível, isso proporciona um êxtase em que o sentir e o descrever não ocupam o mesmo sentido.
Ao final há o reconhecimento do absurdo que se demonstra na expressão destes momentos, mas fica o convite para jamais deixar esse inusitado ir de qualquer SER. Há quem diga que desta matéria todos são feitos. Ao fim e ao cabo nunca se deve deixar de expressar as coisas da alma, mesmo que a mesmice da vida conclua que essas ilações são ridículas.

© Clivânia Teixeira

a palavra à toa

"Palavras não existem
fora da nossa voz as
palavras não assistem
palavras somos nós"
(CRUZ, Gastão. "A doença". Os poemas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009)


um alarme toca na ponta dos dedos
rabisco sem pontos sem vírgulas
sem compromisso esbarro em mim mesmo
insulto com termos que mordem
como pode ter sentido o não sentido
se a palavra inexplicavelmente é um poema
no céu aberto de mim mesmo
aprecio este estardalhaço na calma
no espaço em mim que desconheço
a palavra anda descalça
entrelinhas que se cruzam
mensagem subjacente
do simples olhar que não se cruza
debruçada na janela da metamorfose
transforma-se

© Clivânia Teixeira